Poemas de Abril

 

O que aquela noite me quis dar

 

Eu não estava em casa nessa noite, filho,

nem podia estar. Estava nas ruas com os soldados

que rumavam às rádios e aos quartéis, engalanados

de sombra e de júbilo, a ver o que aquela noite

ia dar, o que a nossa liberdade prometia ser.

E tu, filho, tinhas a idade rumorejante

desse Abril embalado por uma canção do Zeca.

Como posso eu explicar-te tudo aquilo

que tu nasceste para aprender, para viver?

Eu estava aquartelado no meu silêncio

de pétalas, sílabas e marés, no meu dédalo

de vozes embriagadas pelo vento,

na coragem errante das pelejas da infância

e pouco ou nada sabia do mistério desse mês

capaz de transformar em assombro as nossas vidas.

 

Sim, sou eu neste retrato antigo,

a receber em festa os exilados, os que chegavam

com grinaldas de cantigas e a flor de uma ilusão

bordada a sangue e espuma no capote das nocturnas caminhadas. Sim, sou eu a escrever a primeira reportagem

do primeiro de muitos dias em que o tempo

deixou de contar, em que os relógios

se tornaram corolas de paixão e riso

na lapela larga da alegria desta pátria.

 

Eu não estava em casa nessa noite, filho,

estava a afinar o coração pelo tom

das mais belas melodias que alguém pode aprender

para dar a quem ama a paz de um sono sem tormento.

 

José Jorge Letria, dezembro de 1998

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